Não é uma tarefa fácil ou confortável se propor a estudar a obra de Lina Bo Bardi em momentos comemorativos como esse. O percurso é acidentado, os ventos sopram em todas as direções e, considerando um paradigma em que as marés da informação chegam a nos sufocar, a investigação se torna uma aventura. Por outro lado, cada mergulho nos revela um sentido diferente, nos coloca em contato com outros aventureiros e torna a obra de Lina mais presenta na vida de cada vez mais pessoas.
A retomada do seu trabalho neste momento, além de ser motivado pelo centanário de seu nascimento, é reflexo do interesse crescente da comunidade internacional por suas realizações, principalmente a partir da Bienal de Arquitetura de Veneza de 2010, com curadoria de Kazuo Sejima, que dedicou uma mostra especial para sua obra.
O momento também coincide com um amadurecimento do campo intelectual da arquitetura no Brasil. Em relação a tudo o que fez, pouca coisa foi sendo incluída na história da arquitetura e da cultura brasileira enquanto esteve viva.
Os primeiros estudos que se debruçaram sobre a vida e a obra de Lina Bo Bardi foram realizados nos anos próximos a sua morte em 1992. Durante essa década, a principal tarefa foi reunir e difundir suas realizações. Estes esforços que fizeram surgir seus projetos e seus modos de trabalho, além da vitalidade persistente de sua obra construída, foram essenciais para o reconhecimento de Lina Bo Bardi como grande arquiteta brasileira.
Já se sabe que suas peculiaridades e algumas circunstâncias excepcionais criadas ou não por ela mesma, em grande parte, dificultam sua inserção em narrativas operativas oficiais, que estiveram a serviço da legitimação do estado brasileiro e da classe profissional. Foi ao redor da virada do milênio que começaram a surgir as interpretações em relação à atuação profissional e intelectual da arquiteta. Ganharam destaque neste momento não só seus projetos arquitetônicos, mas toda a sua produção gráfica e editorial, seus textos e artigos de imprensa, suas experiências cênicas e suas exposições. Os estudos desta época possibilitaram um grande salto interpretativo e começaram a apontar direções inovadoras e alternativas para se pensar a arquitetura contemporânea. Além disso, chamaram a atenção para aspectos primordiais e potencialidades dos próprios edifícios projetados por Lina que foram subestimados e prejudicados por intervenções equivocadas.
Em âmbito internacional, os estudos parecem estar entre o reconhecimento e os primeiros avanços interpretativos. Muito veiculados na forma de exposições, os conteúdos são apresentados a partir de diretrizes conceituais que contribuem para uma apreensão mais complexa das obras e do que elas representam. Para evitar a hipótese das capacidades avançadas dos intelectuais estrangeiros, que não nos esclareceriam muita coisa, é mais oportuno notar de que forma a arquitetura participa de um sistema cultural mais amplo em que outros públicos de outras áreas profissionais compartilham estes esforços interpretativos e se valem deles.
A pergunta atual, portanto, se refere às possibilidades de avanço a partir do que elaboramos até agora em relação a atuação de Lina Bo Bardi. Ainda que aparentemente saturadas, as apreensões e os debates são ainda insipientes se comparados com os desdobramentos oficiais da arquitetura e da cultura brasileiras. Ainda mais se considerarmos sua atuação e posteriores relações com o contexto italiano que ainda não foram suficientemente esclarecidas.
É o momento, portanto, de um esforço associativo. Um esforço na direção de uma abordagem abrangente e sistematizada das relações sociais, profissionais, ideológicas sob as quais atuou e interveio. Isso passa por reconhecer a relevância dos personagens ao seu redor, mas vai além disso, pois não se trata necessariamente de diminuir seu protagonismo, mas qualificar suas atitudes a partir de reações, afirmações, radicalidades.
Em síntese, não mais recorrer a um contexto dado para entender o trabalho de Lina, mas inserir suas realizações em uma cadeia de acontecimentos de forma a transformar o entendimento sobre ambos.
Lina parece ter percebido com grande clareza o dilema pelo qual a arquitetura passava a partir da crise do movimento moderno. Ao vivenciar de perto os avanços dos meios técnicos de comunicação nas sociedades ocidentais e seus efeitos na cidade, se da conta de que as apostas nas capacidades imagéticas da arquitetura, o mais antigo meio de comunicação na formulação de Walter Benjamin, são um caminho sem saída. Ainda nesta mesma concepção, a aposta de Lina Bo Bardi não se volta portanto aos aspectos ópticos da arquitetura, como será o caso de grande parte das experiências pós-modernas. Seu investimento é tátil e procura realizar revoluções distraídas nos hábitos de apreensão dos espaços arquitetônicos, sugerindo uma via alternativa e sistemática para se enfrentar a crise.
Estas decisões não se manifestam de forma clara ou articulada e só podem ser avaliadas e compreendidas ao se constatar padrões em comum entre dilemas que Lina, assim como outros arquitetos, enfrentavam e procuravam solucionar de maneiras diferentes.
O presente neste caso se refere à tentativa de estabelecer um sentido histórico para a experiência do momento atual em que comemoramos o centenário de Lina Bo Bardi. Um sentido que ela costumava chamar de “Presente Histórico”. Por outro lado, diz respeito a potencialidades que este momento de esforços unificados e interesses ampliados pode nos trazer, suas alegrias e descobertas, um esforço capaz de tornar vivo e presente um legado que se transmite e se transforma, não pela estagnação dos consensos e das certezas absolutas, mas pela sua própria capacidade de se manter sempre acurado e inquieto.
Sobre o autor
Frederico Costa é arquiteto e pesquisador formado pela UNICAMP. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado no programa de pós-graduação da FAU/USP na área de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo.